A primeira liberdade que há 50
anos o Movimento das Forças Armadas trouxe aos portugueses foi a liberdade de
expressão. O que é a liberdade de expressão? É a liberdade de dizer, a
liberdade de discordar, a liberdade de criticar, a liberdade de apoiar, a
liberdade de escrever, a liberdade de publicar, a liberdade de ler, a liberdade
de ouvir, a liberdade de ver, a liberdade de divulgar, a liberdade de
propagandear, a liberdade de ajuizar, a liberdade de duvidar, a liberdade de
gracejar, a liberdade de escarnecer.
A liberdade de expressão é a
liberdade da circulação das ideias, das mais parvas às mais inteligentes, das
mais profundas às mais inconsequentes, das mais revolucionárias às mais
reacionárias, das mais humanas às mais selvagens.
Este foi um direito que a
população, concentrada frente ao Quartel do Carmo, à espera da rendição do
ditador Marcello Caetano, decretou com efeitos imediatos logo nesse dia 25 de
Abril de 1974 e que depois o país referendou na semana seguinte, no dia 1 de
Maio, com a maior manifestação política alguma vez ocorrida neste país,
celebrando-a por toda a parte com gritos comocionados: “Viva, viva a
liberdade!”
Tudo o que se passou depois
decorreu da utilização dessa liberdade de expressão e a sociedade portuguesa
que construímos ao longo destes 50 anos, com os seus imensos defeitos e as suas
evidentes virtudes, resultou da sobrevivência do debate político suportado no
princípio da superioridade da liberdade de expressão: a liberdade de expressão
foi a maior de todas as conquistas de Abril.
No dia 25 de Abril de 1974 eu era
uma criança com 10 anos de idade, filho de uma família que não falava de
política. Apesar disso, a lembrança que tenho desse dia é detalhada e
permanente. A razão é esta: os adultos, todos os adultos à minha volta mudaram instantaneamente,
numa transformação tão drástica, tão rápida e tão evidente que ficou impressa a
tinta indelével na minha memória infantil. Porquê? Porque os adultos, de
repente, falavam livremente, com desenvoltura, com atrevimento, com
assertividade e, mesmo não percebendo muito bem sobre o que falavam, até uma
criança como eu entendia que havia um “antes” e um “depois” daquele dia e
percebia que o “depois” era emancipador e o “antes” era opressor.
Talvez seja por isso que, 50 anos
depois, ao ver multiplicarem-se agressões à liberdade de expressão, algumas
delas entretanto institucionalizadas ou oficiosamente aceites pelo poder
político e económico, sinto cada uma delas como uma autêntica agressão pessoal.
É a liberdade de expressão que me
dá o direito e o instrumento para combater e criticar todas a ideias que eu
acho negativas neste mundo e é, por outro lado, a liberdade de expressão que me
dá o direito de tentar convencer os outros da bondade das minhas ideias.
Mas aceitar a liberdade de
expressão impede-me de proibir a manifestação das ideias dos outros, caso
contrário terei de aceitar que os outros possam proibir a exposição das minhas
ideias.
Quando a Alemanha proíbe e
criminaliza uma conferência que o antigo ministro grego Yannis Varoufakis ia
dar em Berlim sobre a questão palestiniana; quando vários artistas e académicos
são penalizados, cancelados, nos EUA e na Europa Ocidental, por terem posições
políticas críticas da NATO ou de Israel; quando jornalistas de países ditos
democráticos são perseguidos e presos por reportarem o “lado errado” dos
conflitos; quando se lançam antigos livros e filmes, clássicos, “limpos” de
vocabulário ofensivo; quando a coberto da proteção contra as fake news se
impediu a crítica aos confinamentos da covid-19 e aos efeitos secundários de vacinas
pobremente testadas; quando se admitiu que o professor russo Vladimir Pliasso
fosse despedido da Universidade de Coimbra por razões ideológicas; quando em
vez de educarmos e combatermos socialmente a linguagem não-inclusiva a tentamos
impor à força, pela lei; quando nenhum político tenta reverter a decisão
europeia de cancelar o canal russo RT; quando vejo o Facebook censurar durante
uns dias a página de um partido que é meu inimigo político, o Chega (apesar de
que, talvez, esse partido gostasse de limitar a minha liberdade de expressão);
quando vejo, também em Portugal, multiplicarem-se todos estes movimentos, à
esquerda e à direita, de limitação da liberdade de expressão vejo,
simultaneamente, a aproximação do fim de uma ideia essencial do 25 de Abril que
agora celebramos, vejo o fim da liberdade de expressão, vejo o fim de uma grata
memória de infância, vejo o fim de toda uma conceção social de boa parte das
nossas vidas.
* Jornalista